A Disfunção do Tendão Tibial Posterior
Uma das causas mais comuns de um pé plano no adulto é a disfunção do tendão tibial posterior.
Essa alteração, também chamada de pé plano do adulto ou síndrome do tibial posterior, ainda gera muitas discussões e controvérsias médicas em relação a sua causa, evolução e métodos de tratamento. Existem diversas teorias que tentam compreender, classificar e tratar essa patologia. Por essa razão, cada paciente deve ser analisado individualmente, identificando as deformidades presentes e as alterações estruturais do pé que compõe essa síndrome.
Os primeiros relatos e descrições medicas sobre o processo inflamatório e degenerativo do tendão tibial posterior surgiram a partir da década de 30 e os primeiros procedimentos cirúrgicos foram instituídos a partir da década de 50. As primeiras indicações cirúrgicas foram baseadas em um processo inflamatório crônico (tendinose) do tibial posterior sem melhora com tratamento clínico, e constituía somente na realização do desbridamento do tendão degenerado e limpeza do tecido inflamatório.
A partir da década de 70 os estudos correlacionaram a inflamação e degeneração do tendão posterior com a perda do suporte do arco medial e a deformidade progressiva em pronação (pé plano ou pé chato progressivo).
Nos anos 80 e 90 foram publicados diversos estudos de biomecânica e teorias sobre a etiologia (causas) da disfunção do tendão tibial posterior. Classificações em graus e variações de técnicas cirúrgicas foram propostas a fim de organizar o entendimento e o tratamento de acordo com a progressão do processo degenerativo do tendão e da deformidade adquirida.
O tendão tibial posterior se origina junto ao músculo de mesmo nome (músculo tibial posterior) no compartimento posterior da perna, profundamente aos músculos da panturrilha (sóleo e gastrocnêmios). Seu trajeto percorre em direção ao pé, passando por detrás da protuberância interna do tornozelo (maléolo medial) e se inserindo em formato de leque na face interna e plantar do mediopé, principalmente na protuberância medial do osso navicular.
O tendão tibial posterior, juntamente com outras estruturas de suporte, é responsável pela manutenção do arco medial do pé e promove um movimento triplanar simultâneo de adução, flexão plantar e supinação do pé, que denominamos de INVERSÂO do pé. Ele é um importante estabilizador da articulação subtalar durante as fases da marcha, auxiliando a musculatura da panturrilha na transferência da força de impulso.
As causas da disfunção do tendão tibial posterior são multifatoriais e dependem de características particulares de cada paciente.
Normalmente existe alguma doença ou processo associado que predispõe a ruptura do tendão tibial posterior.
Algumas das principais teorias que explicam os fatores causais são:
1. Trauma Direto – Lesões por contusão ou cortes não são comumente vistas
2. Trauma Indireto – Lesões associadas às entorses e fraturas de tornozelo podem ocorrer, mas raramente evoluem para uma disfunção degenerativa do tendão. Em contrapartida, atividades que exigem movimentos de repetição podem causar microtraumas por sobrecarga mecânica (microrrupturas) e provocar um processo inflamatório crônico com perda progressiva da elasticidade e da força do tibial posterior.
3. Doenças Inflamatórias – Doenças reumáticas provocam a degeneração progressiva das articulações, dos tendões e dos ligamentos que envolvem os ossos do pé. A lesão inflamatória crônica do tecido fibroso ocasiona um desequilíbrio estrutural que deforma as articulações e agride diretamente o tecido tendíneo. Elas representam um importante fator causador do pé plano no adulto.
4. Alterações Hormonais – A doença degenerativa do tibial posterior parece estar associada mais comumente ao sexo feminino. Teorias sugerem uma maior incidência em mulheres após a menopausa. Além disso, as doenças reumáticas apresentam prevalência de 60 a 70 % do sexo feminino, isto é, cerca de 2,5 vezes mais frequente que nos homens.
5. Alteração Vascular – Doenças que alteram e comprometem o suprimento de sangue ao tendão tibial posterior são prováveis causas da sua disfunção. Diabetes, doenças vasculares e uso crônico de corticoides podem diminuir o aporte sanguíneo em determinadas zonas do tendão e propiciar sua degeneração e ruptura.
6. Postural – Pés planos de origem genética (pé plano flexível ou pé plano idiopático) possuem maior probabilidade de evoluírem para uma insuficiência do tibial posterior, pois causam elevado estresse ligamentar na face medial do pé e um aumento da resistência e tensão sobre esse tendão.
7. Navicular Acessório – A presença desse ossículo acessório do navicular possui alta correlação com a disfunção do tibial posterior, pois ocasiona o aumento do comprimento tendíneo (alongamento) no local de inserção no pé, tornando-o insuficiente.
O tendão tibial posterior age através de uma excursão de apenas 2 centímetros, portanto qualquer lesão ou doença que provoque um estiramento ou torne o tendão um pouco mais longo promove uma perda importante da função. Esse processo pode ser agudo, como um corte ou trauma, ou crônico, como em doenças inflamatórias e degenerativas.
Quando ocorre a disfunção do tendão tibial posterior, em um primeiro momento o arco do pé se mantém estável através dos ligamentos que dão suporte aos ossos e às articulações. Com o passar do tempo, o peso corporal e a carga mecânica exercida sobre esses ligamentos fazem com que eles cedam e fiquem mais frouxos, perdendo a tensão de sustentação e causando a queda do arco plantar.
A perda do arco plantar faz com que o pé fique plano (pé chato), favorecendo outras alterações anatômicas secundárias como o encurtamento dos tendões fibulares e a lateralização do tendão calcâneo (tendão de Aquiles).
Com a progressão e o agravamento da deformidade do pé, as articulações envolvidas são forçadas a trabalhar em ângulos diferentes e não anatômicos, o que leva ao desgaste precoce da cartilagem articular (artrose).
A deformidade em pé plano acontece progressivamente e apresenta-se como uma síndrome evolutiva com vários espectros. Entretanto, foi proposta uma classificação de acordo com a gravidade, deformidade e achados radiológicos para um melhor entendimento científico e abordagem terapêutica.
Classificamos a disfunção do tibial anterior atualmente em 4 estágios:
Inflamação (tenossinovite) do tendão tibial posterior, com dor e inchaço (edema) na face interna do pé, abaixo do maléolo medial e ao longo do trajeto do tendão.
A função, força e sustentação do arco plantar está preservada. O paciente ainda consegue fazer e manter a elevação do seu peso na ponta do pé. Entretanto, se este movimento for repetitivo pode ocasionar dor.
Nesse estágio a deformidade em pé plano é mínima ou está ausente.
Ocorre a perda da função do tibial posterior, com a degeneração e alongamento tendíneo.
O paciente tem dificuldade ou incapacidade de fazer e manter a elevação de seu peso na ponta do pé.
A perda do arco plantar é visível e a deformidade em pé plano é evidente. O calcanhar e a frente do pé podem estar desviados para fora (retropé valgo e antepé abduzido).
Atualmente subdividimos esse estágio em dois subtipos:
Tipo A – Dor medial, colapso moderado do arco plantar e força do tibial posterior preservada.
Tipo B – Dor medial, colapso do arco plantar com disfunção completa do tibial posterior e dor lateral por impacto fibular.
Nesse estágio as articulações do pé e tornozelo são móveis e redutíveis. É possível realizar o alinhamento das deformidades articulares durante o exame físico do paciente.
Deformidade em pé plano importante com rigidez articular estabelecida da articulação do calcanhar (subtalar).
Existe incapacidade completa para a elevação do peso na ponta do pé.
A queixa de dor na porção lateral do tornozelo pelo impacto fibular pode ser mais importante do que na face interna do pé.
A deformidade rígida impede a redução manual da articulação no exame físico. O paciente apresenta encurtamento do tendão calcâneo (Aquiles) e supinação compensatória do antepé.
A deformidade crônica e o desalinhamento do pé levam ao desgaste e deterioração da cartilagem articular do tornozelo.
O padrão de dor lateral, antes ocasionada somente pelo impacto entre a fíbula e o calcâneo, torna-se mais abrangente e envolve a própria articulação do tornozelo.
A deformidade do pé e tornozelo depende do estágio da doença em que o paciente se encontra no momento do exame físico. O alinhamento do pé e tornozelo pode ser anatômico e simétrico no estágio inicial ou apresentar uma importante deformidade em pé plano, com rotação e desvio lateral do pé.
O edema (inchaço) da porção interna do tornozelo deve-se ao acúmulo de líquido no interior da bainha tendínea e ao redor da lesão do tibial posterior por processo inflamatório.
Pontos de dor podem ser diagnosticados pela palpação do local da lesão e o paciente pode referir dor na porção lateral do tornozelo, abaixo da protuberância óssea fibular, ocasionado pela deformidade e impacto entre a fíbula e o calcâneo.
Ao observar a posição do pé visto por trás (posteriormente) podemos notar claramente o deslocamento dos dedos para o lado externo (abdução do antepé), chamamos este sinal de “Too-Many-Toes”, indicando um grau de lesão mais avançado.
O teste de ficar ponta de ambos os pés pode revelar uma diferença de postura e a não correção da deformidade nesta posição.
O movimento feito somente com o apoio do pé afetado testa a integridade e força muscular do tendão tibial posterior. A incapacidade de elevação na ponta do pé revela a disfunção do tendão.
A mobilidade da articulação do tornozelo, subtalar e mediopé deve ser testada e comparada com o lado contralateral, de forma passiva, e com o paciente sentado.
Sendo uma deformidade evolutiva e complexa, outros testes podem ser realizados no exame físico para melhor entendimento e planejamento do tratamento ortopédico.
A ressonância nuclear magnética é o melhor exame para avaliar o tecido inflamado, lesões de partes moles e coleções líquidas. Visualiza muito bem a estrutura do tendão, a bainha do tibial posterior, ligamentos, lesões por impacto e sobrecarga óssea e o grau de degeneração da superfície condral (cartilagem articular) do tornozelo e do tálus.
A ultrassonografia pode ser utilizada caso não haja acesso ou impossibilidade de realizar o estudo por ressonância nuclear magnética. Entretanto, é necessário um profissional treinado para realizar uma boa avaliação e diagnóstico.
Conservador:
O tratamento conservador tem por objetivo amenizar a dor e melhorar o alinhamento e posicionamento do pé e do tornozelo, principalmente em pacientes que apresentam grau inicial de lesão (estágio 1 – Inflamatório).
O uso de palmilhas semirrígidas tipo UCBL, com paredes elevadas, apoio para o arco plantar e modelagem do calcanhar com leve elevação medial, alinha o pé, alivia a força de ação do tendão e dá melhor firmeza e equilíbrio para caminhar.
Medicações orais como analgésicos e anti-inflamatórios podem ser usados para alívio da dor. A fisioterapia é de grande auxílio para a manutenção do condicionamento tendíneo e muscular, assim como no treinamento correto da marcha.
Entretanto, é importante salientar que, a grande maioria dos pacientes com lesão inicial do tendão tibial posterior (estágio 1) evoluem com deformidade em pé plano (estágio 2), podendo evoluir para artrose subtalar (estágio 3) e artrose do tornozelo (estágio 4).
Cirúrgico:
O tratamento cirúrgico é indicado quando o tendão tibial posterior perde sua força e a deformidade do pé plano progride. Geralmente a dor se intensifica com a piora da evolução.
A indicação do procedimento cirúrgico depende do estágio de lesão em que o paciente se encontra, do grau de degeneração do tendão e da integridade da cartilagem das articulações envolvidas.
Quando existe a ruptura do tendão, sem deformidade grave e com bom movimento articular (articulações íntegras), o procedimento mais utilizado é a substituição do tendão doente por um tendão sadio, isto é, realizamos a transferência de um tendão normal, geralmente o tendão flexor longo dos dedos (TFLD), para o local onde atuava o tendão doente (tibial posterior rompido).
Essa substituição não causa a perda completa da função anterior do tendão flexor longo dos dedos, pois existe uma intersecção anatômica, uma união natural, com outro tendão, o flexor longo do 1º dedo, chamada de Nó de Henry.
Essa característica anatômica (Nó de Henry) permite manter a função de flexionar os dedos do pé , pois o tendão flexor longo do 1º dedo assume o movimento e função do tendão transferido.
Frequentemente esse procedimento é realizado juntamente com o reposicionamento e alinhamento do osso do calcanhar (calcâneo), e serve para melhorar o apoio, dar suporte e proteger a ação do tendão transferido. Este procedimento é chamado de Osteotomia de Medialização do Calcâneo.